O café dos físicos

Alguns amigos da física têm uma percepção das ciências humanas bastante curiosa:

De um lado, eles consideram as ciências humanas tão fáceis que é possível ler algo delas passando o café da manhã. Assim, livros como Eichmann em Jerusalém seriam uma espécie de passatempo curioso. Mas pensamento mesmo, com “P” maiúsculo, ocorre quando eles sentam com o café junto à mesa, devidamente preparados não para o café da manhã, mas para pensar fazendo cálculo.

Por outro lado, quando tais amigos se deparam com um livro de ciências humanas difícil, o parecer deles se inverte: é literatura ruim e sequer digna de diversão. Ser e Tempo ou os Escritos de Lacan: são impossíveis no café. O que significa dizer que eles não atribuem a dificuldade à riqueza dos argumentos - mesmo sob o estilo difícil -, e sim à leitura. Só calcular deveria oferecer desafio e seria impossível um livro de filosofia, psicanálise, humanidades, ser tão difícil a ponto de alguém não os conseguir ler preparando o café. Coisa assim só poderia ser artimanha de quem não pensa ou tem um pensamento confuso, pouco lógico. É o que justifica reduzirem pensadores como tantos franceses, e alguns alemães, ao simples epíteto de obscuros e desonestos, sequer merecedores de um bom café (apesar de muitos deles, como Sartre, terem recusado o prêmio Nobel enquanto escreviam dentro de cafés).

Isso tudo, conforme dito, é curioso. Em primeiro lugar porque deve ser um verdadeiro problema para o físico a separação entre escrever e calcular. Em que momento ele deixa de calcular e se preocupa com essas coisas menores, tais como escrever? Afinal, aquele que escreve livros de física, explorando suas consequências, precisa alternar os papeis de escritor e leitor, e se ele não faz isso nos momentos de cálculo, dificilmente conseguiria escrever seus livros apenas passando café.

Em segundo lugar, pareceu posto que a relação entre a escrita e o cálculo deve ser aquela entre o não-saber (ou o saber limítrofe) e o saber verdadeiro. Mas se é assim, como foi que o físico passou a refugar as letras, chegando a certa visão de que o saber verdadeiro só pode ser calculado? Há, como sabemos, algumas respostas de história da ciência que narram a origem do pensamento moderno e a admissão da matemática que teria “superado” a especulação.

Essa é uma história fabulosa da ciência, que dispensa por exemplo que o universo de Copérnico, que não era exatamente matemático, só foi tornado possível por um pensamento não-físico - mera literatura? - vindo de fatores pouco exatos como a anatomia de Vesalius ou atualizações do neoplatonismo. Dizer que a física é matemática porque é meramente antimedieval e moderna dispensa ter que justificar como surgiu no século XIX a separação entre as ciências naturais e as do espírito (chamadas não de ciências, mas de Wissenschaften), ou como o termo “cientista” foi cunhado no clima do positivismo de então que antagonizava com a Naturphilosophie, ou ainda, como inúmeros físicos - citemos apenas Ritter e Orsted - fizeram ressair teses físicas de ambientes condenáveis - igualmente a Naturphilosophie - por qualquer físico. Dizer tais coisas significa ter que ignorar que polímatas como Gustav Fecher - o primeiro a tentar relacionar Ohm com Ampère ou elaborar uma teoria planetária do átomo - diziam que o universo inteiro detinha uma alma e a comprovação disso seria também apoiável por leis psicofísicas.

Como dizer que teses científicas possam, na história da ciência, ter saído de questões desinteressantes à ciência? E como não cair na simples fábula da matematização progressiva, da descoberta do objeto escondido a todos os povos e culturas, menos a ocidental - como não cair nessas teses historiográficas as quais os historiadores lêem enquanto sorriem passando um bom café?

Há muitas coisas cuja resposta não pode ser pensada fazendo café, e sim na companhia de um bom café - e talvez não apenas calculando…